[ leituras, reflexões, dia-a-dia, e algo mais ]

Entrada no domínio da luta

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 19 de dezembro de 2010

Mas, na verdade, nada pode impedir o retorno, cada vez mais frequente, desses momentos em que a solidão absoluta, a sensação de vazio universal e o pressentimento de que a existência se aproxima de um desastre doloroso e definitivo se unem para mergulha-lo num estado de sofrimento real […] Debaixo dos nossos olhos, o mundo se uniformiza; os meios de comunicação avançam; o interior dos apartamentos se enriquece de novos equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis, o que reduz, na mesma proporção, a quantidade de peripércias de que se compõe uma vida. E aos poucos, o rosto da morte aparece, em todo o seu esplendor. O terceiro milênio mostra a sua cara […] Parece inverossímil que uma vida humana se reduza a tão pouco. A gente imagina, apesar de tudo, que algo, cedo ou tarde, acontecerá. Profundo engano. Uma vida pode ser muito bem, ao mesmo tempo, vazia e curta. Os dias passam pobres, sem deixar rastros nem lembranças; depois, de um golpe, acabam […] O tédio prolongado não é uma posição sustentável. Transforma-se, cedo ou tarde, em percepções nitidamente mais dolorosas, de uma dor positiva.

Michel Houellebecq, in Extensão do Domínio da Luta

Luminosidade

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 15 de fevereiro de 2009

[…] Então, por um instante, tive a mais tremenda sensação de pena dos seres humanos, sejam eles o que forem, o rosto, a boca cheia de dor, personalidades, tentativas de ser alegres, pequenas petulâncias, sensação de perda, piadinhas chatas e vazias que logo seriam esquecidas: ah, para quê? […] Subi a colina aos tropeções, cumprimentado pelos passarinhos, e olhei para as figuras dormentes e acotoveladas no chão. Quem seriam todos esses fantasmas estranhos enraizados a essa tola aventurazinha na terra junto comigo?

Jack Kerouac, in Vagabundos Iluminados

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Dancem macacos!

Posted in Reflexão, Videos by usucapiao on 5 de fevereiro de 2009

O caminho do conhecimento e suas distrações

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 5 de fevereiro de 2009

A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser chamadas “ciências conforme a nossa vontade”. Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.

Francis Bacon, in Novum Organon

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Como vejo o mundo

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 1 de fevereiro de 2009

Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas.
E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida — corpo e alma — integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito.
Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: “O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a instintos de grupo.
Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde moço já as desprezava. Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social. Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância. Conheço com  lucidez e sem prevenção as fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens.
Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.

Albert Einstein, in “Como Vejo O Mundo”

A alma que procura

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 27 de janeiro de 2009

Gabinete de Estudos

Estudante
Faz pouco aqui cheguei, e uso a ocasião
Para vos procurar. Tenho imenso prazer
De a homem como vós falar e conhecer,
A quem todos referem com alta devoção.

Mefistófeles
Agrada-me bastante a tua gentileza!
Sou homem como tantos: Olha! Com certeza
Começaste a estudar. Já tens um professor?

Estudante
Meu desejo é estudar, e o quero com fervor!
Procuro este local com coragem e virtude,
Tenho pouco dinheiro e ardente juventude.
Minha mãe relutou em deixar-me afastar,
Almejo com vigor aqui me aprofundar.

Mefistófeles
A escola que te serve achaste enfim agora.

Estudante (observando o recinto)
Para ser bem sincero almejo ir-me embora.
Estes muros antigos, ambiente abafado,
Em nada isto me agrada, estou desanimado.
O espaço é muito pouco, estreito, desencanta,
Não se vê um jardim, não há nenhuma planta,
Velhas colunas, bancos, completo desalento,
Aqui se embota o ouvido, a vista e o pensamento.

Mefistófeles
Isso depende mais de hábito, também.
Recém-nascido nos braços de sua mãe amua,
Recusa receber o leite que faz bem,
Mas logo com prazer o quer e se habitua;
Assim, também sucede em tetas da sapiência,
Há que sugá-las sempre e com maior veemência.

Estudante
Ao mestre enfim me apego a ter maior regalo,
Dizei, então, dizei: — como posso alcançá-lo?

Mefistófeles
Esclarece primeiro, antes de te afastar;
Das nossas faculdades, qual queres cursar?

Estudante
Pretendo aqui estudar com toda persistência,
Com gosto aprofundar-me em tudo que na terra
E no céu tem origem e real existência.
Ciência e natureza investigar de fato.

Mefistófeles
Enveredas assim pelo caminho exato,
É bom que não te percas com toda essa ciência.

Estudante
Entrego-me ao ofício com todo corpo e alma
Alegre ficaria, entanto, se com calma
Tivesse liberdade e alguma distração,
Nos belos feriados suaves do verão.

Mefistófeles
O tempo esvai-se logo e deves bem gozá-lo,
A ordem e a disciplina ensinam a utilizá-lo.
Aconselho-te, então meu caro amigo,
A primeiro estudar a lógica comigo,
Teu espírito estará por fim bem amestrado,
E em botas espanholas muitíssimas ajustadas
E assim já poderá deslizar, num momento,
Nas estradas suaves de todo pensamento.
Não andarás indeciso a torto e a direito,
Erradio, a vagar, sem o menor proveito.
Aqui te ensinarão, durante muitos dias,
O que de um golpe só comumente fazias,
Qual comer e beber com liberdade, várias
Vezes. Uma, duas, três! Quantas necessárias.
Na verdade isso ocorre em fábrica — pensante
Como do tecelão na máquina possante,
Onde um só pedal move mil filamentos,
Em que as pecinhas vibram em movimentos,
Invisíveis os fios deslizam com pujança,
O filósofo sábio investiga e avança,
Demonstra que no mundo está tudo na ordem:
O primeiro era assim, o segundo também,
Então o terceiro e quarto em seguida vêm.
Se o primeiro e segundo em ordem não se viam,
Terceiro e quarto então jamais se encontrariam.
Isso louvam estudantes em todos os rincões,
Mas nunca eles se tornam ao menos tecelões.
Quem quer investigar e a vida desvendar,
O espírito abandona em primeiro lugar,
E exibe nas suas mãos apenas a matéria.
Infelizmente falta aquela força etérea,
Encheiresin naturae a isso chama a química.
Zomba assim de si mesma a usar estranha mímica!

Estudante
Eu também não entendo o que estais a ensinar-me.

Mefistófeles
Mas na próxima vez, vindo aqui me procurar
Entenderás melhor! REDUZIR é iniciar.
Depois muito te empenha em bem CLASSIFICAR.

Estudante
Eu fico tão confuso ante essa explicação
Qual tivera no crânio uma mó em rotação.

Mefistófeles
Antes de outras ciências humanas desvendar
Deves a metafísica a fundo investigar!
Do mais íntimo da alma arrancar com pujança
O que o cérebro humano em si jamais alcança.
Quer entendas quer não, se a coisa é duvidosa,
Há sempre uma palavra a expressar grandiosa.
Aproveita com afinco o semestre de estudo,
Ordena com cuidado e disciplina tudo.
Cinco horas no dia, medidas na ampulheta.
Sê muito pontual aos toques da sineta!
Antes de ir à escola estuda bem a lição
E os pontos investiga, um a um, na ocasião,
Para que mais e mais progridas no saber.
Não digas nada além do que o livro disser.
Escreve com cuidado, esforço e todo encanto,
Qual se inspirado fosses no Espírito Santo!

Estudante
Não deveis repetir. Não há necessidade!
Sei o valor real de tudo o que ensinais,
Tendo o preto no branco, al não quero mais,
Posso trazê-lo a casa e ter tranqüilidade.

Mefistófeles
Não te almejo esse mal tão duro e tão execrado,
Bem sei como se estuda o direito em verdade.
Herdam-se eternamente as leis e seus direitos,
Como se fossem do povo eterna enfermidade,
Geração a geração se infiltram com mil jeitos,
Lentamente se vão de cidade a cidade.
Razão é contra-senso, o bem se torna injúria;
Pobre de ti se herdares de outros que hão vivido!
E quanto a esse direito atualmente surgido,
Que pena! Nem se fala! É tudo coisa espúria.

Estudante
Minha aversão cresceu com vosso ensinamento,
Feliz o que vos tem como mestre! Talento!
Talvez seja melhor cursar Teologia.

Mefistófeles
Não quero te levar para tal erronia.
O que essa ciência alcança e nos ensina,
Difícil é de evitar em seus falsos caminhos.
Contém tanto veneno escondido que mina!
Difícil é separar dos remédios daninhos.
Melhor que tudo isso é ouvir um só conselho;
Com teu mestre jurar! Fazê-lo o teu espelho!
Como norma geral às palavras te apega!
Entra assim pela porta aberta e bem trafega,
Até o templo santo onde há sabedoria.

Estudante
Mas à palavra a idéia há de ser companhia.

Mefistófeles
Muito bom! Não devemos assim ter tanto medo;
Pois onde falta a idéia, encontra-se um arremedo,
Aplica-se a palavra afinal muito bem.
Com palavras se luta e com heroicidade,
Com palavras se faz sistema que convém,
Em achaques, crê com tal facilidade,
A elas jota algum se rouba na verdade.

Estudante
Perdão, se vos molesto. A prosa não termina.
No entanto algo preciso ainda conhecer.
Que aconselheis então se estudar medicina?
Tereis uma palavra — incentivo a dizer?
Três anos passam logo, o tempo tudo arrasta.
Meu Deus! Essa seara ao certo é muito vasta.
Se tenho um bom conselho, um justo e reto aviso,
Sigo logo o caminho, ao que parece, idôneo.

Mefistófeles (de si para consigo)
Já cansei de falar austero e com siso,
Vou passar a expressar-me, agora, qual demônio.

Mefistófeles (falando alto)
Da medicina é fácil saber o conteúdo,
O que é grande e pequeno estudar neste mundo,
E deixar afinal que se resolva tudo
Como aprouver a Deus, altíssimo, profundo.
Na ciência se perde o homem por inteiro.
Cada qual só assimila um pouco se é capaz.
Aquele que desfruta o momento fugaz,
Esse é para mim um homem verdadeiro!
Ao certo foste feito em alguma perfeição
Coragem, destemor em ti se conciliam,
Se em ti tens confiança e fé, convicção,
Em ti todas as almas, enfim, também confiam.
Aprende sobretudo a lidar com mulheres,
Nelas já são normais achaques, azedumes,
Aos milhares verás ataques e queixumes,
Que podes dominar, depressa, se quiseres.
Com elas há de agir com ares de honradez,
Logo as terás nas mãos seguras de uma vez.
O título de médico inspira confiança
E tua arte abre as portas a outras artes mais;
Ao ser bem recebido atinges sem tardança
O que outros só alcançam em anos infernais.
Toma, como doutor, o pulso e bem manhoso
A esbelta silhueta espreita com maestria
E o laço do espartilho vê onde se esconde…

Estudante
Bravos! Nessa ciência existe um “como” e um “onde”!

Mefistófeles
Cinzenta, caro amigo, é toda teoria,
Verdejante e dourada é a árvore da vida!

Estudante
Eu vos juro, isto é sonho! Oh alma comovida!
Poderei procurar-vos, aqui, outra vez mais,
E a ciência estudar, tão alta, que ensinais?

Mefistófeles
Dentro nas minhas forças, ajudo paciente.

Estudante
Ao sair peço ainda ao ver tanta cultura:
Neste álbum pessoal, que tenho aqui presente,
Lançai alguma coisa e ponde a assinatura.

Mefistófeles
É muito natural! Não há nenhum favor!
(Escreve e devolve o álbum.)

Estudante (lê)
Eritis scuit Deus, scientes bonum et malum.
(Fecha o álbum de maneira respeitosa.)

Goethe, in Fausto

(não tive paciência de escrever o diálogo extamente como está na tradução da obra que possuo então copiei o texto como está no Projeto Goethe.)

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A Grande Estrada

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 12 de janeiro de 2009

Em algum lugar ao longo da estrada eu sabia que haveria garotas, visões e tudo o mais; na estrada, em algum lugar, a pérola me seria ofertada.( p. 28 )

Acordei com o sol rubro do fim de tarde; e aquele foi um momento marcante em minha vida, o mais bizarro de todos, quando não soube quem eu era – estava longe de casa, assombrado e fatigado pela viagem, num quarto de hotel barato que nunca vira antes, ouvindo o silvo das locomotivas, e o rangers das velhas madeiras do hotel, e passos ressoando no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, eolhei para o teto rachado e por quinze estranhos segundos realmente não soube quem eu era. Não fiquei apavorado; eu simplesmente era uma outra pessoa, um estranho, e toda a minha existência era uma vida mal-assombrada, a vida de um fantasma.  ( p. 35 )

Os pisos das estações rodoviárias são exatamente iguais no país inteiro, sempre cobertos de baganas e catarros, e eles provocam uma melancolia profunda que só mesmo as rodoviárias poderiam ter. ( p. 57 )

Ela suspirava no escuro, “O que você espera da vida?”, perguntei, eu vivia perguntando isso às garotas.”Não sei”, respondeu. “Apenas servir as mesas e esperar que tudo dê certo”. Ela bocejou. Pus minha mão em sua boca e lhe disse que não bocejasse. Tentei explicar a ela o quão excitado eu estava pela vida e as coisas que poderíamos fazer juntos; dizendo isso, e pensando em deixar Denver dentro de dois dias. Ela se virou, entediada. Ficamos deitados de costas, olhando para o forro e refletindo sobre o que Deus deveria estar pensando quando fez a vida ser tão triste assim. ( p. 81 )

Aquela noite em Harrisburg tive de dormir num banco da estação ferroviária; ao amanhecer o chefe da estação me enxotou. Não é verdade que você começa a vida como uma criancinha crédula sob a proteção paterna? E então chega o dia da indiferença, em que o cara descobre que é um desgraçado, um miserável, fraco, cego e nu, e com a aparência de um fantasma fatigado e fatídico avança trêmulo por uma vida de pesadelo. Me arrastei para fora da estação, desfigurado. Estava fora de mim. Daquela manhã tudo o que eu podia perceber era sua própria palidez, como a palidez de um túmulo. ( p. 138-139 )

O anonimato no mundo dos homens é melhor do que a fama no céu, porque… o que é o céu, no fim das contas? E a terra, o que é? Tudo ilusório. ( p. 300 )

Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. ( p. 305 )

[…] e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice… ( p. 372 )

Pé na Estrada (On The Road), Jack Kerouac, L&PM Editores

In Jack Kerouac, Pé na Estrada. Porto Alegre, L&PM, 2008. 1 edição.

A visão sobre uma forma de levar a vida

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 9 de janeiro de 2009

A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não tem outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existencia; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranqüilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula … tudo isso, Wahlheim, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.

As crianças – todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito – não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos. da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vem e para onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, portanto, que se acham subordinados à vida dos sentidos.

Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e, quando conseguem agarrar, enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas com sofreguidão e gritam: “Quero mais!” Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimentos destinados à salvação e prosperidade do genero humano.. Tanto melhor para os que são assim!. . . Mas aquele, que humildemente reconhece o resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como o burgues facilmente arranja o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como o miserável, arfando sob o seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos, do mesmo modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol. . . sim, quem isso observa a margem permanece tranqüilo. Também este se representa a seu modo um universo que tira de si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstáculos que entravem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que é livre e poderá, quando quiser, sair da sua prisão.

Os Sofrimentos do Jovem Werther, Goethe

Intelecto, Expectativas, Juízos, Abstração

Posted in Livros, Reflexão by usucapiao on 9 de janeiro de 2009

Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afe tado; mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema. Digo que resolvi enfim porque à primeira vista parecia insensato querer deixar uma coisa certa por outra então incerta. De fato, via as comodidades que se adquirem pela honra e pelas riquezas, e que precisava abster-me de procurá-las, se tencionasse empenhar-me seriamente nessa nova pesquisa. Verificava, assim, que se, por acaso, a suprema felicidade consistisse naquelas coisas, iria privar-me delas; se, porém, nelas não se encontrasse e só a elas me dedicasse, também careceria da mesma felicidade. Ponderava, portanto, interiormente se não seria possível chegar ao novo modo de vida, ou pelo menos à certeza a seu respeito, sem mudar a ordem e a conduta comum de minha existência, o que te ntei muitas vezes, mas em vão. Com efeito, as coisas que ocorrem mais na vida e são tidas pelos homens como o supremo bem resumem-se, ao que se pode depreender de suas obras, nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência. Por elas a mente se vê tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outro bem. Realmente, no que tange à concupiscência, o espírito fica por ela de tal maneira possuído como se repousasse num bem, tornando-se de todo impossibilitado de pensar em outra coisa; mas, após a sua fruição, segue-se a maior das tristezas, a qual, se não suspende a mente, pelo menos a perturba e a embota. Também procurando as honras e a riqueza, não pouco a mente se distrai, mormente quando são buscadas apenas por si mesmas, porque entã o serão tidas como o sumo bem. Pela honra, porém, muito mais ainda fica distraída a mente, pois sempre se supõe ser um bem por si e como que o fim último, ao qual tudo se dirige. Além do mais, nestas últimas coisas não aparece, como na concupiscência, o arrependimento. Pelo contrário, quanto mais qualquer delas se possuir, mais aumentará a alegria e consequentemente sempre mais somos incitados a aumentá-las. Se, porém, nos virmos frustrados alguma vez nessa esperança, surge uma extrema tristeza. Por último, a honra representa um grande impedimento pelo fato de precisarmos, para consegui-la, adaptar a nossa vida à opinião dos outros, a saber, fugindo do que os homens em geral fogem e buscando o que vulgarmente procuram.

Spinoza, Tratado Sobre a Correção do Intelecto

Be Hungry, Be Foolish

Posted in Reflexão, Videos by usucapiao on 8 de janeiro de 2009

Estou honrado de estar aqui, na formatura de uma das melhores universidades do mundo. Eu nunca me formei na universidade. Que a verdade seja seja dita, isso é o mais perto que eu já cheguei de uma cerimônia de formatura. Hoje, eu gostaria de contar a vocês três histórias da minha vida. E é isso. Nada demais. Apenas três histórias.

A primeira história é sobre ligar os pontos

Eu abandonei o Reed College depois de seis meses, mas fiquei enrolando por mais dezoito meses antes de realmente abandonar a escola. E por que eu a abandonei?
Tudo começou antes de eu nascer. Minha mãe biológica era uma jovem universitária solteira que decidiu me dar para a adoção. Ela queria muito que eu fosse adotado por pessoas com curso superior. Tudo estava armado para que eu fosse adotado no nascimento por um advogado e sua esposa. Mas, quando eu apareci, eles decidiram que queriam mesmo uma menina. Então meus pais, que estavam em uma lista de espera, receberam uma ligação no meio da noite com uma pergunta: “Apareceu um garoto. Vocês o querem?” Eles disseram: “É claro.” Minha mãe biológica descobriu mais tarde que a minha mãe nunca tinha se formado na faculdade e que o meu pai nunca tinha completado o ensino médio. Ela se recusou a assinar os papéis da adoção. Ela só aceitou meses mais tarde quando os meus pais prometeram que algum dia eu iria para a faculdade.
E, 17 anos mais tarde, eu fui para a faculdade. Mas, inocentemente escolhi uma faculdade que era quase tão cara quanto Stanford. E todas as economias dos meus pais, que eram da classe trabalhadora, estavam sendo usados para pagar as mensalidades. Depois de 6 meses, eu não podia ver valor naquilo. Eu não tinha idéia do que queria fazer na minha vida e menos idéia ainda de como a universidade poderia me ajudar naquela escolha. E lá estava eu gastando todo o dinheiro que meus pais tinham juntado durante toda a vida. E então decidi largar e acreditar que tudo ficaria OK. Foi muito assustador naquela época, mas olhando para trás foi uma das melhores decisões que já fiz. No minuto em que larguei, eu pude parar de assistir às matérias obrigatórias que não me interessavam e comecei a frequentar aquelas que pareciam interessantes.
Não foi tudo assim romântico. Eu não tinha um quarto no dormitório e por isso eu dormia no chão do quarto de amigos. Eu recolhia garrafas de Coca-Cola para ganhar 5 centavos, com os quais eu comprava comida. Eu andava 11 quilômetros pela cidade todo domingo à noite para ter uma boa refeição no templo hare-krishna. Eu amava aquilo. Muito do que descobri naquele época, guiado pela minha curiosidade e intuição, mostrou-se mais tarde ser de uma importância sem preço.
Vou dar um exemplo: o Reed College oferecia naquela época a melhor formação de caligrafia do país. Em todo o campus, cada poster e cada etiqueta de gaveta eram escritas com uma bela letra de mão. Como eu tinha largado o curso e não precisava frequentar as aulas normais, decidi assistir as aulas de caligrafia. Aprendi sobre fontes com serifa e sem serifa, sobre variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia boa. Aquilo era bonito, histórico e artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode entender. E eu achei aquilo tudo fascinante.
Nada daquilo tinha qualquer aplicação prática para a minha vida. Mas 10 anos mais tarde, quando estávamos criando o primeiro computador Macintosh, tudo voltou. E nós colocamos tudo aquilo no Mac. Foi o primeiro computador com tipografia bonita. Se eu nunca tivesse deixado aquele curso na faculdade, o Mac nunca teria tido as fontes múltiplas ou proporcionalmente espaçadas. E considerando que o Windows simplesmente copiou o Mac, é bem provável que nenhum computador as tivesse. Se eu nunca tivesse largado o curso, nunca teria frequentado essas aulas de caligrafia e os computadores poderiam não ter a maravilhosa caligrafia que eles têm. É claro que era impossível conectar esses fatos olhando para a frente quando eu estava na faculdade. Mas aquilo ficou muito, muito claro olhando para trás 10 anos depois.
De novo, você não consegue conectar os fatos olhando para frente. Você só os conecta quando olha para trás. Então tem que acreditar que, de alguma forma, eles vão se conectar no futuro. Você tem que acreditar em alguma coisa – sua garra, destino, vida, karma ou o que quer que seja. Essa maneira de encarar a vida nunca me decepcionou e tem feito toda a diferença para mim.

Minha segunda história é sobre amor e perda.

Eu tive sorte porque descobri bem cedo o que queria fazer na minha vida. Woz e eu começamos a Apple na garagem dos meus pais quando eu tinha 20 anos. Trabalhamos duro e, em 10 anos, a Apple se transformou em uma empresa de 2 bilhões de dólares e mais de 4 mil empregados. Um ano antes, tínhamos acabado de lançar nossa maior criação – o Macintosh – e eu tinha 30 anos. E aí fui demitido. Como é possível ser demitido da empresa que você criou? Bem, quando a Apple cresceu, contratamos alguém para dirigir a companhia. No primeiro ano, tudo deu certo, mas com o tempo nossas visões de futuro começaram a divergir. Quando isso aconteceu, o conselho de diretores ficou do lado dele. O que tinha sido o foco de toda a minha vida adulta tinha ido embora e isso foi devastador. Fiquei sem saber o que fazer por alguns meses. Senti que tinha decepcionado a geração anterior de empreendedores. Que tinha deixado cair o bastão no momento em que ele estava sendo passado para mim. Eu encontrei David Peckard e Bob Noyce e tentei me desculpar por ter estragado tudo daquela maneira. Foi um fracasso público e eu até mesmo pensei em deixar o Vale [do Silício]. Mas, lentamente, eu comecei a me dar conta de que eu ainda amava o que fazia. Foi quando decidi começar de novo.
Não enxerguei isso na época, mas ser demitido da Apple foi a melhor coisa que podia ter acontecido para mim. O peso de ser bem sucedido foi substituído pela leveza de ser de novo um iniciante, com menos certezas sobre tudo. Isso me deu liberdade para começar um dos períodos mais criativos da minha vida. Durante os cinco anos seguintes, criei uma companhia chamada NeXT, outra companhia chamada Pixar e me apaixonei por uma mulher maravilhosa que se tornou minha esposa. Pixar fez o primeiro filme animado por computador, Toy Story, e é o estúdio de animação mais bem sucedido do mundo. Em uma inacreditável guinada de eventos, a Apple comprou a NeXT, eu voltei para a empresa e a tecnologia que desenvolvemos nela está no coração do atual renascimento da Apple. E Lorene e eu temos uma família maravilhosa.
Tenho certeza de que nada disso teria acontecido se eu não tivesse sido demitido da Apple. Foi um remédio horrível, mas eu entendo que o paciente precisava. Às vezes, a vida bate com um tijolo na sua cabeça. Não perca a fé. Estou convencido de que a única coisa que me permitiu seguir adiante foi o meu amor pelo que fazia. Você tem que descobrir o que você ama. Isso é verdadeiro tanto para o seu trabalho quanto para com as pessoas que você ama. Seu trabalho vai preencher uma parte grande da sua vida, e a única maneira de ficar realmente satisfeito é fazer o que você acredita ser um ótimo trabalho. E a única maneira de fazer um excelente trabalho é amar o que você faz. Se você ainda não encontrou o que é, continue procurando. Não sossegue. Assim como todos os assuntos do coração, você saberá quando encontrar. E, como em qualquer grande relacionamento, só fica melhor e melhor à medida que os anos passam. Então continue procurando até você achar. Não sossegue.

Minha terceira história é sobre morte.

Quando eu tinha 17 anos, li uma frase que era algo assim: “Se você viver cada dia como se fosse o último, um dia ele realmente será o último”. Aquilo me impressionou, e desde então, nos últimos 33 anos, eu olho para mim mesmo no espelho toda manhã e pergunto: “Se hoje fosse o meu último dia, eu gostaria de fazer o que farei hoje?” E se a resposta é “não” por muitos dias seguidos, sei que preciso mudar alguma coisa.

Lembrar que estarei morto em breve é a ferramenta mais importante que já encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase tudo –  expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou falhar – caem diante da morte, deixando apenas o que é apenas importante. Não há razão para não seguir o seu coração. Lembrar que você vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há razão para não seguir seu coração.
Há um ano, eu fui diagnosticado com câncer. Era 7h30 da manhã e eu tinha uma imagem que mostrava claramente um tumor no pâncreas. Eu nem sabia o que era um pâncreas. Os médicos me disseram que aquilo era certamente um tipo de câncer incurável, e que eu não deveria esperar viver mais de 3 a 6 semanas. Meu médico me aconselhou a ir para casa e arrumar minhas coisas – que é o código dos médicos para “preparar para morrer”. Significa tentar dizer às suas crianças em alguns meses tudo aquilo que você pensou ter os próximos 10 anos para dizer. Significa dizer seu adeus. Eu vivi com aquele diagnóstico o dia inteiro. Depois, à tarde, eu fiz uma biópsia, em que eles enfiaram um endoscópio pela minha garganta abaixo, através do meu estômago e pelos intestinos. Colocaram uma agulha no meu pâncreas e tiraram algumas células do tumor. Eu estava sedado, mas minha mulher, que estava lá, contou que quando os médicos viram as células em um microscópio, começaram a chorar. Era uma forma muito rara de câncer pancreático que podia ser curada com cirurgia. Eu operei e estou bem. Isso foi o mais perto que eu estive de encarar a morte e eu espero que seja o mais perto que vou ficar pelas próximas décadas. Tendo passado por isso, posso agora dizer a vocês, com um pouco mais de certeza do que quando a morte era um conceito apenas abstrato: ninguém quer morrer. Até mesmo as pessoas que querem ir para o céu não querem morrer para chegar lá. Ainda assim, a morte é o destino que todos nós compartilhamos. Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim é como deve ser, porque a morte é muito provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de mudança da vida. Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo. Nesse momento, o novo é você. Mas algum dia, não muito distante, você gradualmente se tornará um velho e será varrido. Desculpa ser tão dramático, mas isso é a verdade.
O seu tempo é limitado, então não o gaste vivendo a vida de um outro alguém. Não fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas. Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior. E o mais importante: tenha coragem de seguir o seu próprio coração e a sua intuição. Eles de alguma maneira já sabem o que você realmente quer se tornar. Todo o resto é secundário. Quando eu era pequeno, uma das bíblias da minha geração era o Whole Earth Catalog. Foi criado por um sujeito chamado Stewart Brand em Menlo Park, não muito longe daqui. Ele o trouxe à vida com seu toque poético. Isso foi no final dos anos 60, antes dos computadores e dos programas de paginação. Então tudo era feito com máquinas de escrever, tesouras e câmeras Polaroid. Era como o Google em forma de livro, 35 anos antes do Google aparecer. Era idealista e cheio de boas ferramentas e noções. Stewart e sua equipe publicaram várias edições de The Whole Earth Catalog e, quando ele já tinha cumprido sua missão, eles lançaram uma edição final. Isso foi em meados de 70 e eu tinha a idade de vocês. Na contracapa havia uma fotografia de uma estrada de interior ensolarada, daquele tipo onde você poderia se achar pedindo carona se fosse aventureiro. Abaixo, estavam as palavras: “Continue com fome, continue bobo”. Foi a mensagem de despedida deles. Continue com fome. Continue bobo. E eu sempre desejei isso para mim mesmo. E agora, quando vocês se formam e começam de novo, eu desejo isso para vocês. Continuem com fome. Continuem bobos.
Obrigado.